sábado, 5 de maio de 2012

Pelo Fim do Mundo e os Dromedários Dançantes



“One day I will find the right words,
and they will be simple”.

Em matéria de amor, ela fez um gesto com a cabeça. Algo que ela faz quando eu digo uma coisa muito exagerada, mas não quer demonstrar assim com tantas palavras. É um reflexo, como ajeitar os cabelos, ou morder a ponta de um velho lápis. É uma clara expressão de dúvida, um mover quase pendular do pescoço, levando a cabeça de um lado para o outro como que tentando processar a informação. É um sino confuso sobre em qual lado deve bater mais. É um lábio nervoso que come inevitáveis pedaços de borracha rosa, daquelas que apagam menos do que uma lembrança. Eu também preciso do meu lápis e não deixo o espetáculo passar; esse movimento que ela aprendeu comigo - e por minha causa, tenho certeza - pode muito bem ser a coisa mais bonita do mundo. Um gesto, como que esperando, realmente, achar que o que eu disse foi só uma coisa corriqueira, mas descobrindo que é ainda menos do que isso. É participar do meu processo e, se o acaso deixar, entender, ou só ouvir mais um pouquinho. Enquanto isso eu só sei continuar, como sempre, as minhas intermináveis e excessivas histórias de infância.

- E ela disse que não me amava, ali mesmo, em cima da casinha de madeira, do lado dos balanços e com outras crianças gritando ao fundo. Simplesmente o pior lugar onde poderiam fazer isso comigo, ao lado do meu balanço preferido. Acho, inclusive, que tinha um garoto atirando areia na minha cara enquanto isso. Mas eu não o culpo, mesmo, eu faria igual. Alguém precisava acabar com aquela cena. Era mais digno me assistir comendo areia.

E ela não disse nada, não diz nada. Parece ser algum tipo de padrão, o silêncio dela. Só olha pra mim, com um sorriso de canto, uma saia rasgada, e a dor de todos os mundos do universo. Os seus olhos são retas e o seu rosto se compõe com linhas, é uma colagem de expressões simples e pequenas. É aquele tipo de paisagem que se forma com a própria vida e você não consegue olhar para outro lado, porque, simplesmente, sabe que não existe nada que vibre mais do que isso. Ela, por si só, ela, cabe em uma folha A4, quase pertence ao papel prisão, só que provavelmente não entraria lá de bom grado. Ela é forte, porém para desenhar o seu rosto eu só preciso de, no máximo, uns seis traços, e teria que fazer isso da forma mais leve possível, flutuando, ou em cima de algum algodão doce. Eu queria fazer isso agora mesmo, queria desenhá-la! Deixá-la por perto, vê-la na gaveta toda quarta-feira mais solitária. E até apagá-la. E criar tudo de novo - em cima do papel - ao lado de todas as coisas que restaram. Colorir, quem sabe; só se eu conseguir achar todas as suas cores. Não que ela seja colorida, pelo contrário, ela é sóbria como o papel em branco. Mas ela colore, e tudo, da forma mais simples possível e, tão absurdamente linda, que rouba o cinza de tudo que faz sentido, só rindo de mim. Quero parar com tudo que não tenha esse tom. Quero descer dessa cidade e quero sentir a minha avenida. Eu só quero viver essa vida de rabisco.

As suas sobrancelhas cabem no bolso, cantam de lado, mas o sorriso já faz o serviço.

- E o que tu fez?

- Aquilo, naturalmente, arruinou o meu dia. E toda a primeira série. Eu tinha certeza que todas as crianças comentariam sobre isso e jogariam na minha cara, se se importassem, é claro. E pelo visto, não se importavam muito. Acho que eu queria um pouco da atenção delas. Era o fim do meu mundo naquele ano, não devia ser um evento tão pessoal assim.  Era muita coisa pra se sentir sozinho, sabe?

Ela ri, mas eu não entendo e só queria conseguir parar de falar. Ri culpada, não quer achar graça da minha desgraça, mas uma risada é a única coisa que ela tem para me dar. É só mais um presente mal escolhido, nem de longe desagradável, só que não é do meu tamanho. É difícil comprar roupas para qualquer pessoa hoje em dia, é difícil comprar uma cueca para uma pessoa, e parece fácil ser o momento mais bonito da minha vida, hoje. O começo do mundo. O desenho do dia.

Eu ainda não descobri uma boa forma de calar a boca, principalmente quando caminhando na mesma rua de sempre. Cada centímetro desse lugar, cada segundo, parece conter duas ou três lembranças de infância levemente intensas; e intensamente leves. Um paralelepípedo marca um trauma diferente, ou até uma descoberta, às vezes. Eu caminhava muito quando criança, mas não tinha muitos lugares para onde ir. O destino era limitado às obrigações. Andava-se por onde se devia andar; a liberdade só restava na cabeça. Como consequência, passamos agora pelo centímetro onde eu descobri que minha cabeça talvez fosse grande e pesada demais para o seu pequeno corpo.

- Porra, sério isso?

Não, não foi ela quem disse isso. Acontece que não estamos sozinhos, nem nunca estaremos. Não fora de um papel em branco.

- Sério, sério. Eu tinha, simplesmente, muito tempo livre pra pensar. Tempo demais.

E ainda tenho. Eu quero mudar de assunto, matar os assuntos, mas olho pra ela e é evidente o velho gesto com a cabeça. O silêncio é impossível. O silêncio pertence a ela e não vai ser cedido tão cedo. Passamos pela igreja, a velha igreja; a minha igreja, e minha cabeça só consegue vomitar todas as histórias do reino de deus.

- Eu vim aqui uma vez, obrigado pela minha mãe. Nunca gostei muito de igrejas, sempre tive medos dos vitrais, de santos e, principalmente de anjos. Passei, mais ou menos, dos meus seis aos oito anos de idade achando que eu ia me transformar espontaneamente em um anjo. Do nada, simplesmente.

Dobram-me os sinos com sorrisos e uma risada contida. Soa o barulho da minha cidade, o ruído canção de ninar da Avenida Independência, esquina com a Coronel Vicente. Além do inevitável:

- Por quê? – Ela pergunta com o lábio de quem já sabe a resposta. De alguém que não se entende com os anjos, provavelmente porque pedem muito espaço.

Mas é inevitável – a presença deles; lotam o lugar como se andassem de bicicleta; explodem todo o espaço e, junto com eles, no sopro da velha corneta, vem a paz. Não se estaciona no reino dos céus. Não se fala mais sobre o amor. Só olham para ela, todos. Eu; os anjos; o cenário todo cai em desconstrução.

- Ah, por causa de uma novela, eu acho. Tenho certeza na verdade, só não sei se isso consegue ser socialmente aceito. Eu sempre fui extremamente impressionável. Mesmo.

- Que intenso cara. – Diz o meu amigo, andando conosco como quem não quer nada; alguém que nem suspeita do universo inteiro conspirando esse momento, que isso não é só uma caminhada entre amigos e que hoje não é apenas mais uma quarta-feira. O tempo mudou e as cores nunca foram as mesmas.  Tudo acabou e os dromedários marcaram o tempo.

Ela, ela, se afasta. Caminha lento no deserto, reto, cambaleante. Roubaram-me os traços, não sei mais a simplicidade do retrato. Só posso admirar de longe – calado – falar já não é possível; contornar é inevitável. De trás, de longe, eu vejo o casaco dela; vejo o cachecol que ela usa; sinto o seu passo lento, os pés tropeçados. Ela sabe onde está - isso é a casa dela. Ela caminha com a propriedade de quem sabe tudo, pertence a tudo isso. Ela é má. Ela é boa. E ela usa um casaco inevitável à causa - crochê com desenhos de pequenos dromedários; dromedários dançantes; dromedários que dançam no barulho da cidade; que rodopiam-bailarina pela noite, explodindo o que na cor que lhes resta; que caminham, seguem o caminho, e, certamente, tropeçam junto com ela.  Buscam o calor juntos no deserto. Já é noite, não é fácil ser um dromedário; não é fácil carrega-los por aí e não deixa-los cair do bolso.

Não é fácil assistir a tudo isso. Não na cidade, não na frente da minha casa.

Já na portaria, não tardei em escutar os estalidos, o andar suave e despreocupado dos belos camelídeos. O anúncio dos seus cílios longos e protuberantes - que protegem da dor.  Em meio a eles, os meus pontos e linhas voltavam à vida. Ela veio. Ela disse. Ela prendeu os cabelos e mordeu o lábio inferior. Conversávamos, eu e ela; era como se os dromedários já não estivessem mais ali – se juntaram aos anjos, voavam longe, olhavam espantados. Tinham sede, e eu também.

- Então, eu tenho que ir... Não tenho muito tempo. – Ela fez questão de dizer a todos, destruindo a noite, calando até.  E sim, sim. Você tem que ir, tudo bem, tudo bem. Todos nós temos que ir. Todos têm que aceitar a noite, à noite. O filme acaba, o espetáculo não dura pra sempre. O sino tem que parar de bater.

O carro está perto, nunca é o contrário. A caminhada é breve e eu também não estou mais em casa. Fomos todos juntos; ela logo parou de tentar me entender e quis se explicar. Contou sobre como não gosta do vento, sobre o pintar das unhas, e que tocava bateria, às vezes; eu quis fechar a porta, escolher a cor, e tocar bateria. Eu sempre quis tocar bateria. E eu quero casar com ela – da forma mais sincera – nesse momento, agora, pro resto do meu dia. Quero acordar hoje todos os dias e olhar para ela. Desenha-la. Procura-la, pela rua, na gaveta, em toda quarta-feira mais solitária.

Entramos no carro, no banco de trás, e eu confesso tudo, não tem por que esconder:

- Eu gostei muito do seu casaco, com os camelos.

Ela ri sem medo; se deixando levar da forma mais contida que consegue. Não devem ser camelos, – ou dromedários - mas para mim não podem ser outra coisa e, para ela, não faz diferença.

Seguimos em frente, na conversa, no caminho - e eu ainda não sei para onde estamos indo. Não consigo guardar pra mim, deixar acontecer. Eu quero saber, eu preciso saber. O mundo vai acabar e eu não quero perder o momento.

- Pra onde a gente tá indo? – Eu falo, comedido; gritando, desesperado.

- Eu tenho que voltar pra casa. Eu não moro aqui, moro em Santa Maria.Ela diz; e eu só penso em como não pode ser tão santa, a Maria que tira ela de mim.

- Santa Maria? Então você é de Santa Maria?

- Não! – Ela replica estranhamente exaltada. – Eu sou daqui! – E abre em um sorriso. – Eu nunca nem fui ao supermercado lá.

Eu quero que essa conversa dure para sempre, mas eu não consigo parar de pensar no supermercado em Santa Maria. Como é? Porque ela não vai ao supermercado? Será que eu não posso ir com ela? Comprar uma coca e uns biscoitos; sentar em um banco, na rua. Conversar um pouco. Em Santa Maria, aqui, em qualquer lugar. Olhe para o supermercado, dê uma chance, ele está aí ao lado. Entre no supermercado, pegue um carrinho, corra com ele, até compre algumas coisas. Ande no supermercado, descubra cada canto, saiba onde comprar laranjas. Ame no supermercado, aqui, em qualquer lugar. Só não vá embora, vamos ao supermercado. O carrinho é sempre grande demais, a fila é longa, mas é um santo supermercado; tenho certeza. Vamos ao supermercado, eu carrego as sacolas, não precisa do CPF na nota, não, não, muito obrigado. Não é pra isso que nós vamos ao supermercado. Reze no supermercado, por favor, peça para os anjos ficarem de pé, pesarem as frutas - que só olhem pra gente. A vida não é assim tão fácil, chore no supermercado. Chore. Sinta a minha falta no supermercado.

E o tempo acabou; era o fim do mundo, mas já não era tão pessoal assim. O mundo sabe. O mundo tem certeza. Ela se despediu rápido, saiu sem jeito; os dromedários voltaram, em galope, aflitos, sabendo o final dos tempos. E ela saiu - sozinha, só ela. Contra o mundo, contra a rodoviária.

E eu só queria ir com ela.

quinta-feira, 12 de maio de 2011

Scrap Brain Zone ou Cansei de Escrever Sobre o Amor

“Scrap Brain Zone”

ou

“Cansei de Escrever Sobre o Amor”

Ok, mais uma vez.

Chega dessa constante luta com um pedaço de papel em branco. Pior ainda, não temos nem mais a dignidade do papel. Agora lutamos contra um documento do Word. Talvez o segredo esteja ai, não importa o formato. Não temos que lutar com o meio, temos que trazê-lo pra nossa vida.

Mas com o papel, pelo menos podemos amassá-lo, jogá-lo fora. E assim parecer estar fazendo alguma coisa. Às vezes imprimo coisas só pra poder jogá-las fora.

Tudo isso me deprime um pouco.

Mas tudo bem, pela última vez. Com sentimento.

Em Casa.

Só pelo jeito de abrir a porta eu já sabia o que vinha. Não se faz necessário reproduzir a onomatopeia por que é simplesmente muito particular. Uma ótima maneira de acordar, claro.

‑ Yo!

Ele entrou saltando como sempre e logo parou no meio da sala, pensativo. Como se aquela dúvida o tivesse corroendo aos poucos e muito intensamente. Bom, eu tenho certeza que realmente estava. Então nem me dei ao luxo de perguntar, sei que eu vou descobrir muito em breve. Também não me dei ao luxo de me levantar. Isso ai, estou deitado no sofá, com a cara virada para ele, ás 3 da tarde. Mas tudo bem, hoje foi um dia fraco. Bom, começou agora.

‑ Sabe de um coisa cara? Bah, tem algo me incomodando muito, muito mesmo. Eu tava andando na rua e tal, tranquilo como sempre. Pensando na vida. Ai começou a tocar aquela música sabe? Era numa padaria eu acho, eu lembro que eu fiquei pensando ˜Por que tocam música sertaneja em uma padaria? Ou melhor, sertaneja universitária. Ou talvez universitário-sertaneja? Qual tu acha que é o certo?

- Essa é a dúvida?

- Não não, esquece isso. Então, aquela música do Luan Santana, aquela que faz sucesso sabe? Tá tá, devem ter várias que fazem sucesso, com certeza tem, varias, mas essa é única que eu realmente ouvi por ai, nós ouvimos! A gente até comentou essa outro dia, eu me lembro disso, mas não lembro o porquê. Nem o nome da música. Na verdade, acho que eu nunca soube o nome da música. Tu sabe o nome, da música?

‑ Aquela que é tipo um ataque de Cavaleiros do Zodíaco?

- A que tem tipo um ataque?

Tive que dar uma levantada agora, sabia que isso ia ser cansativo. Melhor poder gesticular um pouco.

- Qual é a diferença?

- Bah, tem muita diferença. Se ela for tipo um ataque, ela é um ataque. Bom, pelo menos ela parece um ataque. Na sua forma. Nós veríamos o Seiya fazendo toda aquela dancinha dos meteoros ao em vez de ouvir o Luan Santana arrasando o coração de guriazinhas de dezessete anos pelo Brasil. Bah, é muito diferente cara. Muda tudo.

- Por acaso é a música que a letra tem um pedaço que lembra a composição de nomes de ataques de Cavaleiros do Zodíaco?

Pude ver o seu rosto brilhar como um meteoro de Pégaso agora. Como ele adora quando as suas explicações realmente fazem sentido e atingem o ponto. Desnecessário? Sim, com certeza, e eu gostaria muito de simplesmente ser poupado desses momentos ao longo do dia. Mas se faz sentido? É, acho que sim.

‑ O refrão?

- Se não fosse no refrão teria outra música do Luan Santana que tem um ataque de Cavaleiros do Zodíaco?

- Eu não sei. Será que tem? Deve ter né cara? Por que, pensa bem, se ele fez sucesso com essa, bah, ele quer mais dinheiro e tal, com certeza. Deve ser a onda dele, músicas com ataques de Cavaleiros do Zodíaco cara.

-Bom, não são de fato ataques de Cavaleiros do Zodíaco.

- Ok, tá tá, bah, lembra a composição. Acho que tu sabe a música então, por que é justamente o refrão que importa cara. Tu vai ver, vou cantar agora com a maior fidelidade possível. Rapidamente. Mas, fielmente. Fielmente.

- Conheço a sua fidelidade musica.

Tudo isso na verdade acontece muito. Não só com músicas, às vezes com filmes, tirinhas de jornal, ou uma vez que foi até bastante interessante, uma conversa que ele ouviu enquanto andava pela rua. Ele realmente colocou alma naquela representação. Mas voltando ao momento, imaginem o Luan Santana, mas sem o sertanejo, só com o universitário. O que talvez seja até melhor, não é?

- “ Te dei o sol te dei o mar, pra roubar seu coração. Você é raio da saudade, meteoro da paixão.”

Sim, claro que teve ênfase nas partes que pareciam ataques de Cavaleiros do Zodíaco. Eu não esperava por menos.

- Bom qual é a dúvida?

Ele continuou me olhando.

- Bah, muito bom né cara? Eu devia colocar aqueles meus vídeos na internet como eu sempre planejei. Bah, eu devia muito! Tu ainda tem aquilo cara?

Não tenho, apaguei o mais rápido possível.

- Nem me fale de vídeos na internet. Por favor.

- Tá, tá cara. Desculpa. Mas existem aqueles ainda?

- Deve tá por ai. Sei lá.

- Beleza! Mas bah, isso não interessa. Sabe a parte que ele fala “Meteoro da Paixão”, sabe essa parte cara?

- Sei.

- Então comecei a pensar nesse meteoro ai e não consegui tirar isso da minha cabeça cara. Bah, saca só. O que ele quer dizer exatamente com isso? Por que, ok, se for de fato um meteoro da paixão, esse meteoro pertence à paixão. A paixão é dona de um meteoro, entendeu cara? A paixão tem um meteoro! E qual seria a composição dele? Bah, seria tipo um meteoro de verdade cara! Ai ele tá falando pra guria, que ela é de fato, um meteoro. De verdade cara! Que pertence à paixão. Bah, genial cara. Mesmo.

Ele continuou me olhando, e eu também já sabia que certamente vinha mais.

- E não acaba por ai! Bah, não acaba por ai mesmo. Não seria melhor, quem sabe, se fosse um meteoro de paixão? Bah pensa bem cara, pensa bem. Se o Luan tivesse colocado meteoro de paixão, bom, isso presumindo que ele é quem escreve as letras né. Bah, será, será que é ele que escreve mesmo? Olha no google ai cara.

Não olhei no google. E sim, tinha um laptop jogado por ali, aberto inclusive. Quase fingi procurar.

- Ãh, ele que escreve.

- Ah é? Tu olhou mesmo cara? Eu imaginava que ele não escrevia. Bom, quem sabe uma ou duas músicas, mas não todas elas, eu sei lá. Bah, ele escreve todas? Bom, isso não importa, na verdade, bah, não importa mesmo. O negócio é que se fosse meteoro de paixão, o meteoro realmente seria feito de paixão! A composição do meteoro seria paixão! Consegue ver a diferença cara? Bah, ele realizou essa música muito mal, muito mesmo. É óbvio que ele queria dizer meteoro de paixão. Muito mal realizado cara.

- Manda uma carta pra ele, sei lá.

- Carta? Até mandaria, mas bah, quem lê cartas hoje em dia? Pior, muito pior, quem escreve cartas? Não vai dar certo cara, bah, não vai mesmo. Tu acha que eu escrevo?

- E-mail.

- É, talvez, talvez mesmo cara. Acho que dá pra fazer.

Ele senta de golpe no sofá ao lado, com um prazer que só essas comparações e soluções para elementos pop da vida conseguem trazer a ele. Enquanto ele se regozija com essa nova descoberta, eu me levanto um pouco mais. Vou pegar um momento para descrever a nossa sala. Creio não ser bom em descrições visuais, demorei muito para ter coragem de fazer essa parte, mas vou fazer o melhor possível. Nossa casa é muito maior do que o necessário, exageradamente. Digo, não temos nem móveis o suficiente para encher o espaço aqui, chega a ser ridículo, sei lá. Os pais do Manoel (meu colega de quarto, entusiasta do sertanejo universitário que acabaram de conhecer) têm alguma grana. Muita na verdade. E acabaram por deixar esta casa para ele. Mas eles não ajudam muito no resto e nós somos em geral, meio jogados e facilmente apegados a pequenas coisas e confortos. Nem preciso dizer que o progresso aqui em casa é pouco, em todos os sentidos. A única parte consideravelmente mobiliada é a sala, e assim acabamos passando todo o nosso tempo na sala. Na ordem do dia mais ou menos, nós: Acordamos na sala, jogamos videogames na sala, comemos na sala, dormimos na sala, jogamos videogames na sala, saímos da sala, eu tento escrever na sala (depois tento escrever fora da sala), nós vemos filmes na sala ás vezes e sempre, sempre, sempre, nós reclamamos das mesmas coisas na sala, e dela própria, e acho que nós ainda jogamos videogames na sala mais uma vez. Também não preciso dizer que a sala é um cômodo deveras importante. Mas não é o único, não. Nos também usamos, por exemplo, uma sacada. E esta me ajuda muito, em noites sem dormir e tardes sem inspiração. Ou talvez ela me atrapalhe, sei lá. Finjo buscar inspiração por lá. O banheiro é bastante frequentado também, naturalmente. E também não deixa de ser um refúgio para a busca de inspiração.

Mas então, acabei divergindo o assunto e fugindo do tema de explicar a casa (acho melhor a sala, que é alma e essência da casa) visualmente. Bom, temos muito sofás. Eu nunca percebi isso até ter que descrever o aspecto da nossa sala, e então parei pra pensar o porquê. A razão de a nossa sala ser praticamente selada por quatro sofás de diferentes cores e tamanhos é a seguinte, nós ganhamos todos eles. Sem dinheiro e disposição para adquirir móveis de verdade, nós contamos com doações de parentes próximos e longínquos, amigos, conhecidos e o ocasional vizinho que morria ou se mudava. Por sinal tínhamos (temos?) um quinto sofá, mas ele acabou virando a fortaleza da solidão, a batcaverna do gato do Manoel, o Manoelo. Nem me falem quanto ao ego. E esse sofá já foi tão incessantemente explorado (arranhado) e demarcado (mijado) que eu pessoalmente não o considero mais um sofá. É praticamente uma extensão do velho Manoelo, e põe velho nisso. Não sei como esse gato continua vivo. Ele já passou por umas três gerações de videojogos da Nintendo, nas mãos do Manoel. Lembrando também do último elemento que compõe a sala: Coisas jogadas. Em sua maioria coisas de videogames, como controles, jogos e acessórios em geral. Mas sem descartar o ocasional saco de Doritos ou folhas de papel em branco.

E aqui estou eu, sentado no sofá longo mais do canto, o encostado na parede. Passando por todo aquele conhecido processo de acordar. Acordar parte do pressuposto de que a vida é uma merda e ser feliz é um processo que dá sono. Essa manhã (15:46) principalmente, acordei com dificuldades. E certamente eu não estava pronto para o Luan Santana e Cavaleiros do Zodíaco tão cedo. O Manoel sempre me pega de surpresa com essas, mas existe um costume. Sei lá. Eu quase gosto disso.

- Acorda cara! Bah, vamos fazer alguma coisa. Domingos já são um saco, e tu nunca colabora. Vamos lá, com vontade! Bah, fazer desse domingo, o melhor domingo de todos os domingos, desde o primeiro domingo.

- Das nossas vidas ou de toda a humanidade?

- Os dois! Bah, cara, e cada um deles. Vamos lá! Vamos correr, sei lá. Tu não gosta de correr, ok cara. Vamos para o parque, jogar peteca ou algo tipo. Hein? Que tu acha? Fazer um exercício cara!

Sono, preguiça, de viver. Quase dormi de novo por um segundo. Só de pensar em parques. Não prestei atenção no geralmente curioso movimento de braços do Manoel enquanto tenta convencer as pessoas.

- Eu faria exercício no domingo se eu gostasse de exercícios, ou de domingos na verdade.

- Bah, qual é cara! Vamos lá, vai ser divertido e tal. Nunca fazemos nada direito, bah, a gente pode passear com o Manoelo, sei lá. Vai lá! Você nunca mas saiu de casa direito cara.

- Você quer mesmo passear com um gato? E um mais velho que o chat da UOL ainda por cima? Por que você não vai jogar Sonic, sei lá. Já acabou o primeiro?

Recentemente adquirimos um Wii para a nossa morada. Sensor de movimento? Não, não, sério. Jogamos o Wii Sports fora, nunca vamos jogar aquilo. Bom nós tentamos uma vez, resultou no Manoel quase quebrando a T.V. jogando o controle, não esperava menos. Nós o compramos pelo simples propósito de jogar jogos antigos no “Virtual Console”. Isso mesmo. E desde então passamos divertidas madrugadas jogando Tales of Mana, Super Mario Bros. 2, Golden Axe, entre outros. E o Manoel anda se empenhando bastante em acabar os quatro “sonics” originais de Mega Drive. Uma batalha pessoal contra a sua própria criança interior que nunca conseguiu passar da fase da água de Sonic 1. Agora, ele passou da fase da água, pelo menos.

- Bah cara, bah, nem me fale mais daquilo. Não aguento mais Sonic, nunca mais quero ouvir falar naquilo. Bah, insuportável cara, insuportável. Tu aguenta aquele jogo ainda? Por que eu, eu não aguento cara.

- Trancou em qual fase?

- Baaaaah, a fase é tensa cara, principalmente porque é uma das últimas. Tu chega nela com não tantas vidas e cansado. E bah, tem muitos lugares tensos, que te matam esmagados. Bah e ainda têm as bombas, os fogos e o chão instável. Eles deixam a fase com um clima tenso demais cara, tenso demais mesmo. O que bah, fica ainda pior por vários pontos que tu tem que passar com calma e paciência. Parando e esperando, parando e esperando, parando e esperando. Putz! Eu não consigo mais, tá eu vou acabar tentando hoje mesmo, mas preciso de uma paz cara. Bah, agora não dá pra jogar Sonic mesmo, depois talvez. Talvez depois cara.

- Que fase é essa?

- Scrap Brain Zone cara. É a penúltima, a penúltima.

- Soa intimidador mesmo. Depois eu ajudo. Se você quiser, sei lá.

- Tu é péssimo em Sonic cara, péssimo. E o teu medo do Robotnik cara?

Verdade. Eu sou muito ruim mesmo. Lembro que a minha mãe era muito melhor do que eu quando criança. Meio deprimente. Mas eu tenho um bom motivo, acho. Sempre morri de medo do Robotnik. E não era um simples medo, pânico você pode dizer. Eu tinha pesadelos com ele constantemente. E quando eu chegava às batalhas com ele, ou eu congelava ou saia correndo. Já entenderam que eu nunca cheguei muito longe em jogos do Sonic, não é? Eu tentei, mas era mais forte do que eu. Bom, levantei-me para beber alguma coisa agora. Eu descreveria a cozinha, mas eu só não a citei antes por ela realmente não ser tão relevante. É só uma peça grande demais, com uma pia singela e uma geladeira velha, talvez uma torradeira jogada por ai. O Manoel foi até lá comigo, naturalmente.

- Ãh, pois é. Faça sozinho então.

- Bah, também nunca entendi, nunca entendi mesmo, o porquê de o Robotnik ter virado o homem-ovo. Bah, ridículo isso cara.

- Eu acho que eles justamente, tentaram deixá-lo mais simpático. Para as crianças. E para os adultos também, é claro.

- E adiantou cara? Tu achou ele mais simpático mesmo?

- Sim. Acho que sim, sei lá. Ele tem pernas longas. Quantos personagens de pernas longas você conhece que não são simpáticos?

- Bah, o Jaffar?

É verdade.

- Pelo menos você passou da terceira fase dessa vez.

- Bah, terceira fase?

- Sonic.

- Ah, a terceira fase cara? Bah lembra? Tem água. Apavorante, apavorante mesmo. Bah me deu saudades de Sonic até, é muito tenso cara. E intenso.

- Vá jogar Sonic então.

- Não, não, vamos sairrrrrrrrrrr (Nota: Foi assim mesmo) cara! Mais tarde eu jogo Sonic. Vai lá, nunca fazemos nada! Nunca mais fizemos nada! Tu tem que sair dessa cara! Bah, tá um dia tão bonito lá fora, olha isso cara! Há quanto tempo não faz um dia bonito desses? Bah, faz tempo cara, faz tempo mesmo. Não lembra não? Muito tempo. Mesmo. É sério cara.

Abri a geladeira. Eu já esperava, mas nunca deixo de ficar um pouco surpreso. Costume. Todo o conteúdo da geladeira consistia em: Um hambúrguer Hot Pocket pela metade, pronto para ser requentado (nem ao menos estava no congelador), tic-tacs (vários, não sei o porquê), um coco aberto, um Tetra Pack de água de coco (vazio) e uma jarra de um tang de pêssego, que foi o escolhido para o meu deleite.

- Cara, Manoel, eu só me mexo na vida hoje para fazer duas coisas (mostrando dois dedos, claro). Treinar os meus pokemons ou tentar escrever alguma coisa. Senão, vou me ater ao plano original mesmo. Que é ficar deitado olhando para o teto e contando quanto teias de aranha novas surgiram de ontem pra hoje. Ou no máximo, se você quiser ficar aqui, assistir e comentar sarcasticamente as suas frustrações com sonic e jogos antigos em geral.

- Escrever cara?

- É. Sei lá. Faz tempo.

- Cara, bah, tu tá fazendo tudo errado, tudo errado cara. Não é assim que tu vai conseguir escrever alguma coisa, não é assim. Há quanto tempo tu não escreve algo que presta? Há quanto tempo? Bah se liga cara. Há quanto tempo você não sai na rua direito? Desde aquele dia? É né cara? Alguém me disse, não lembro quem, não lembro mesmo. Mas alguém me disse, e bah, é uma daquelas coisas que eu senti que eu tinha que lembrar cara. Era que, pra escrever você precisa de duas coisas, mas são duas coisas muito simples cara, realmente muito simples. Bah, simples demais, até eu tenho isso. Não que eu seja simples, mas bom, tu me entendeu cara. É fácil, e ainda assim tu faz tudo errado de qualquer jeito.

- O que é?

- Viver e sentir cara, bah, tu só precisa viver e sentir. Mesmo. Não tem erro. Sem medo.

Pensei.

- É, acho que você tem razão. Vai ser bom dar uma saída. Não deixar o domingo acabar comigo, sei lá. É um costume.

- Claro que eu tenho razão cara! Bah, tu sabe que eu sempre tenho razão, tá cansado de saber disso cara. Vamos lá, vamos lá. Aonde tu quer ir então? Vai lá, bah, qualquer lugar cara.

- Que tal no cinema? Sei lá. O cinema é o lugar que menos me irrita eu acho. Principalmente no momento atual.

Ele me olhou com um profundo descontentamento na verdade. Sonhos de sol e ar puro.

- Bah, quer saber cara? Pode ser vai, vamos lá então. Para o cinema que nós vamos. Mas pode ser um filme 3D pelo menos? Bah, por favor, vamos lá cara.

- Achei que você não conseguia ver o 3D, ou algo do tipo.

- Eu não consigo cara, mas eu gosto de tentar. Realmente gosto de tentar. Tem um tom de aventura a mais do que simplesmente ir ao velho cinema 2D. Bah, quem quer ir naquilo cara? Eu até posso ir, mas ninguém mais vai naquilo. As pessoas nem entendem mais aquilo. Eu não entendo pelo menos.

Poucas coisas me irritam mais do que filmes em 3D, mas tudo bem. Não quis acabar com a felicidade do Manoel dessa vez. Vamos lá. Ao cinema.

No Ônibus

- Eu odeio ônibus. Sabia disso? Odeio mesmo. E eu não costumo ter fortes sentimentos com as coisas. Sei lá.

- Bah cara, eu realmente gosto, gosto mesmo. Tem muito mais amor do que andar de carro, a pé ou qualquer outra coisa. Muito mais amor. Bah rola toda uma interação cara, uma super interação. É só interação.

- Que interação?

Domingo. É, creio ser quase clichê falar sobre domingos na verdade. Todos odeiam domingos. Eu odeio também, isso não é nenhuma novidade. Não perderei o meu tempo e nem o de vocês divagando sobre o controverso primeiro dia da semana. Mas, pensando bem, talvez seja necessário esse desconforto para você ultrapassar a barreira entre as semanas. Certo desgaste energético. Ultrapassar um limiar. E o pobre domingo acaba sendo apenas mais um mártir. Ou talvez seja só um dia com uma péssima programação de T.V. mesmo. Vai saber. Sei lá.

Voltando a nossa emocionante desventura, vocês sabem quanto tempo demora a passar um ônibus no domingo? Bastante. E com ocasional maluco da parada de ônibus pairando sobre a situação. Eu me importo com isso? Não, claro que não. Eu praticamente sou o maluco da parada de ônibus. Mas se eu tenho paciência pra isso? Bom, nesse dia, por exemplo, havia um homem perfeitamente concentrado e empenhado na sua tarefa, de varrer o teto da parada de ônibus. Achei interessante, poético até. E a interação? Eu tento.

- Ãh, você está... Varrendo o teto?

Perguntei ao cavalheiro.

- Não é bem um teto (nota: tom de voz irreproduzível. Escolham o que acharem mais adequado. Não esperavam tanta interação a esta altura da história não é mesmo?).

- Bom, é, a parte de cima então.

- Tava sujo.

- É, isso é verdade.

Por que o Manoel está certo, eu preciso viver um pouco mais para poder escrever algo realmente sincero. Interação. Eu até busco, mas as pessoas não facilitam. Sei lá.

- Bah, eu amo os correios cara. Total fascinação. É um conceito genial demais cara, nobre até. Bah, faça a chuva ou faça sol e toda aquela onda. Bah, lindo cara. Lindo.

Bom, entrou um carteiro no ônibus. Pela parte de trás, é claro. Sempre achei isso interessante. Eles realmente parecem determinados, sei lá. Entrando por trás, entregando as cartas, usando roupas amarelas. Creio que eu vejo um sentido, mas o Bukowski me deu uma impressão complicada quanto aos correios.

- Vá ser carteiro então cara.

- Não cara, não. Bah, tu entendeu tudo errado. Eu não quero ser carteiro! Eu só curto muito os correios, só isso. São coisas bem diferentes cara. O correio também, ele também consiste de toda uma interação, tu já percebeu? Bah, muita interação cara. Muita interação.

Interação de novo? Tanto os correios quanto este ônibus (principalmente) não se parece permitir qualquer tipo de interação. Será só uma impressão minha? Olhei em volta, e as pessoas podiam estar tudo, menos dispostas para interação. Cada um bem fechado nas suas coisas, e eu também, claro. As pessoas não estão simplesmente abertas para esse tipo de coisa. Um cara com fones de ouvido no banco de trás; uma moça olhando sonhadora para a janela, vendo a vida passar; um garoto entretido com o seu celular esperto, jogando Angry Birds ou algo do tipo; eu confabulando sobre essas coisas e o Manoel entretido cantarolando para si aquela música do Luan Santana. Não há interação cara.

- Não há interação cara.

- Bah, estar aqui já é interação cara. Pensa bem. Pura interação. Pura.

Será que pensando no conjunto, eu faço parte dele? Isso é uma interação, eu acho. Então alguém espirrou, creio que foi o garoto dos pássaros. Automaticamente eu quis falar “saúde”, é como um reflexo para mim. Mas mesmo com o “S” lutando para escapar da minha boca e correr livre por ai, por sorte, consegui segurá-lo.

- Por exemplo, eu adoraria falar "saúde" pra todo mundo, se a humanidade não parecesse me odiar tanto. Se não parecesse odiar ela própria, na verdade, sei lá.

- Saúde cara.

E logo veio lá de trás.

- Valeu irmão.

E a já velha conclusão, dessa vez acompanhada de um divertido gesto com os dedos indicadores, como se fossem pêndulos ao contrário.

- Interação cara, interação.

- Qual filme nós vamos ver?

- Bah, Shrek 4 cara! Genial, quero muito ver esse. Muito mesmo.

- Quatro?

Com espanto, e em 3D.

No Cinema

Essa parte é complicada. Vocês não se preocupem, eu obviamente não vou descrever o filme inteiro para os senhores. Também nem posso, por que eu não faço ideia do que acontece naquele filme. Eu tenho um sério problema com películas em 3D, eu não consigo ficar acordado durante elas. Realmente não consigo. Algo naquela atmosfera tridimensional sai da tela e me nocauteia de jeito. Então além dos filmes serem mais caros, e eu ainda tenho o bônus de perder 85% da narrativa. Um bom negócio. Então, eu gostaria de no mínimo tentar passar a experiência 3D para o leitor ocasional disto aqui. Criar o meu 3D afinal. E confabulei por algum tempo “qual seria a forma mais 3d de um simples documento de Word? Com uma simples formatação?” E é o seguinte:

Coloquem os óculos, por favor.

CAPS LOCK. DURANTE O CURTO TEMPO QUE EU FIQUEI ACORDADO NESSE FILME, SÓ CONSEGUI PRESTAR ATENÇÃO REALMENTE EM UMA COISA. UM PEQUENO ASPECTO DA HISTÓRIA QUE REALMENTE ME FEZ PENSAR BASTANTE. COMO RAIOS O BURRO TEVE FILHOS COM UM DRAGÃO? OK, “É SHREK 4, O QUE VOCÊ ESPERAVA?” EU ESPERAVA UM POUQUINHO DE VEROSSIMILHANÇA APENAS, É PEDIR DEMAIS? SEM FALAR NA FALTA DE CARISMA DO PERSONAGEM PRINCIPAL, ELE É PRATICAMENTE CARREGADO PELAS PERSONAGENS DE SUPORTE. AI ELE VOLTOU NO TEMPO, E EU ME ENTREGUEI AOS BRAÇOS DE ORFEU.

Já podem tirar os óculos, mas eu, por exemplo, tenho o costume de roubá-los. Vocês que sabem.

Deixando bem claro que eu não conseguiria escrever uma história melhor que Shrek 4. E não, o Manoel não viu o 3D. E sim, ele é desse tipo de gente que fala durante o filme inteiro e me acordaria com certeza, mas eu acho que para escapar de coisas como essa que realmente servem os já famosos, óculos 3D.

No Shopping.

Como de praxe, saí do cinema e andei “vitrinando” (sim, isso mesmo). Melhor eu dissertar um pouco mais sobre isso. Eu penso jogar umas palavras novas aqui e ali, pra ver se pega. Criar umas expressões, jargões, fundir umas palavras. Algo um pouco Shakespeare, meio Anthony Burgess e um tanto pretensioso. E eu estou tentando ser um pouco mais pretensioso. Uma coisa nova, não dê tanta importância. E caso tenha dúvidas, pode checar o glossário no final deste documento. Mas retornando ao relato, eu andei “vitrinando” por precisos 27 minutos até finalmente perceber que eu estava com os óculos 3D ainda. Eu sei do tempo exato porque no momento em que eu percebi estar usando os óculos, era também o momento em que eu admirava um interessante relógio em uma vitrine, e pelo seu reflexo, me surpreendi com a visão dos óculos que vestiam a minha face.

Não, não, não. Ok, isso tudo foi só uma tentativa de inserir “vitrinando” na história. Mas nada disso aconteceu, e eu sou realmente péssimo com mentiras (belo escritor). E com pretensões. Sei lá.

Mas

De novo.

Shoppings. Eu não tenho nada contra shoppings.

- Bah, demais o filme cara, demais mesmo. Aquele burro sempre acaba comigo cara, acaba comigo. Qual parte que tu mais gostou? Sabe? como eu disse cara, eu quase, quase consegui ver o 3D dessa vez! Quase cara. É uma coisa meio que saindo pra fora né? Quase vi cara, saindo pra fora. O Shrek e tal. Toda aquela onda. Qual foi a tua parte preferida cara?

Agora que eu percebi ainda estar usando os óculos. Meio que quando as coisas deixaram de ser 3D.

- Pois é, as coisas saem pra fora. Sei lá.

- Bah cara, genial. Mal posso esperar pelo próximo.

- Próximo Shrek, próximo filme de animação, próximo filme de animação da Dreamworks, ou próximo filme em geral?

- Bah! Sei lá cara, todos esses.

E eu praticamente gosto desse shopping. Sempre que eu ando por ele (como agora) presto muita atenção nos detalhes de sua estrutura. Ele é um tanto aberto, bastante arejado. A disposição das coisas e a forma que ele assume é praticamente circular, mantendo um bom fluxo de caminhada. Sem falar que ele tem uma vista quase bonita, um ventinho do mar (lago) e está sempre banhado por sol de uma forma intensa. Às vezes eu venho até aqui, sento olhando pro mar (lago de novo, mas eu queria que fosse o mar) e finjo buscar inspiração. Na vida e nos elementos da natureza. Finjo mesmo. É como a minha sacada, talvez um pouco mais bonito. Mas não soa um tanto inspirador? Talvez a própria composição da cena seja a inspiração. Sei lá.

- Bah, não vai falar do Burro e do Dragão de novo né cara?

Pois é.

- Então, não posso não falar. O que que é isso cara? Como eles apresentam isso para as crianças?

- Bah, sei lá cara, eu não dou tanta bola pra isso não. Quando tu viu Shrek 3 também, só falava disso cara. Bah, parece que tu nem viu o resto do filme.

- Como você pode discorrer infinitamente quanto a música aleatória do Luan Santana ser mal construída, e não dar a mínima importância para uma relação totalmente sem fundamento da quadrilogia de filmes “Shrek”? Esse dragão não era um vilão no primeiro filme? Era certo? Eu me lembro disso. Eles pegam o vilão e transformam em par romântico do personagem que é o simples alívio cômico da composição? Por favor, tudo tem o seu limite cara.

- Bah, então tu duvida da relação dos dois, cara? Do amor dos dois? Bah, duvidando do amor cara? Por favor.

- É, sei lá. Talvez seja inveja da relação perfeitamente saudável e construtiva que os dois possuem. Realmente, com cada um doando e recebendo o máximo possível. Pensando no problema um do outro e expondo as coisas que incomodam, de uma forma delicada. E consideração, eu sei lá. Isso é sempre importante.

E ai estava o gesto com os dedos apontadores (indicadores, sabiam dessa outra forma de chamá-los?) de novo.

- Interação cara. Tu não tá vendo ainda, bah, interação cara.

Frustração agora. Sim, talvez ele estivesse certo mesmo. Talvez falte sensibilidade.

- Quer tal comer alguma coisa?

- Bah, pode ser cara. Tava pensando nisso mesmo.

- Interação?

- Não cara, ainda não.

E recém-abatido com essa triste notícia, despontamos rapidamente para a praça de alimentação, sem falar muita coisa. Eu realmente estava um tanto frustrado. Mas praças de alimentação, em geral, quase facilmente conseguem me imbuir de humor automático. É um banho, uma chuva de marcas coloridas com nomes estranhos para comidas comuns. Poucas coisas são mais divertidas do que isso. Poder pedir um pão com bacon chamado Mcnífico bacon especial com cheddar, e coisas do tipo. É a comida, trabalhando pra gente. Praticamente. Eu não pedi nada do tipo, preferi permanecer no clássico, batatas fritas embebidas por Ovomaltine. Mas o Manoel pediu mais ou menos isso, ou isso.

- Bah cara, tu vai morrer comendo desse jeito sabia? Morrer, bah, sinto muito. E eu não vou te ajudar também, não vou mesmo.

- Ok.

Eu queria rebater falando dos sanduíches coloridos dele, mas não estava com paciência para atritos alimentares agora. Quando percebi um olhar alheio. Um olhar feminino, algumas mesas pra frente, entre o Giraffas e o Spoleto. Amor à primeira vista, eu sei lá. Mas eu não fui o único a notar.

- Ei cara, bah , tem uma guria te olhando ali.

- Pois é. Acho que tem mesmo.

Não sei descrever um olhar, simplesmente me falta essa poesia toda. Não é óbvio? Mas era estranho.

- Bah cara, intenso. Bah, devia ir lá falar com ela.

Então notei algo pequeno, mas imperdoável, como uma formiga em um açucareiro.

- Ela tá comendo Onion Rings, sozinha. Quem faz isso?

- Qual é o problema cara?

- Sei lá, que tipo de mensagem uma pessoa passa para o mundo, quando vai até um shopping, se senta pra comer e pede anéis de cebola, sozinha?

- Bah, o tipo que gosta muito de Onion Rings? Sei lá cara.

- Muito mais do que isso, talvez ela nem goste de anéis de cebola. Eles são um escudo, uma proteção contra a sociedade e o possível transeunte conhecido que esteja no shopping. É um sinal cara.

- E, bah, se ela estiver esperando alguém, ou algo do tipo cara?

- Sei lá, ela parece estar esperando alguém? Os anéis de cebola apontam o contrário.

- E não sei quanto a isso cara. Por que, bah, tu sabe disso, tem muita gente, muita gente que encara comida por porção como um convite pra se sentar do teu lado e comer um pouco. Bah, tu sabe que é assim cara. Aí não só tu tá convidando as pessoas pra se sentarem contigo, como elas tão pegando a tua comida.

Tive que parar pra pensar um pouco.

- Sim, mas quem gosta de anéis de cebola?

- Bah, eu gosto cara.

- É, eu também gosto. Mas sempre achei que era algo especial, como comer picles com geléia, sei lá.

- Bah, isso também não parece muito especial cara.

- Bom, talvez nem seja mesmo.

Acho que as pessoas (eu incluso) tem esse costume de achar que todas as pequenas coisas sobre elas são muito especiais e únicas. Mas creio que seja melhor pensar assim, não? É bom acreditar na sua própria individualidade, isso nos ajuda a manter alguma sanidade.

- E bah cara, eu devo tá certo, mesmo. Por que acho que ela tá te chamando pra ir lá cara. Acho mesmo. Olha lá.

Não era nem algo sutil. Ela realmente estava me chamando para ir até lá. E acho que eu se for até ela, provavelmente vou acabar sentando e pegando um anel de cebola mesmo.

- Bah, vamos lá cara. Vamos lá falar com ela.

- Não! Senta ai, coma o seu sanduíche.

- Vamos lá cara.

Então, inevitavelmente ele se levantou e começou a gesticular a ela. Aquela coisa clássica, mas muito difícil de ser expressar com palavras. Movimentos de braço, falas mudas, dedos girando, polegares sendo levantados. Uma combinação gestual de mútuo interesse em ambas as partes se encontrarem e um contrato informal de que nós estaríamos indo até a mesa dela, agora. E fomos. Depois dessa, não dava para simplesmente não ir. Talvez eu deva descrevê-la. Não é? A moça da cebola. Descrições e mais descrições. Se você quer descrições vá ver um filme, ler reside apenas na sua imaginação meu amigo. Descrições não são necessárias. Ok, mas vai ter uma descrição sim. Só que de novo, me falta aquela sensibilidade para descrever as coisas. Então costumo dar uma enrolada. Sei lá. E é o primeiro novo personagem a ser introduzido na história. Sem falar que eu nem ao menos descrevi o Manoel, perceberam isso?

E com ela será breve. Sentada de maneira despojada e despreocupada, entre anéis de cebola e mesas com cadeiras tortas, lá estava a garota do sorriso meio cínico, de lado, quase caindo. Junto ao meio sorriso, olhos de meias verdades, verdes, grandes. Dedos nervosos e cabelos bonitos, loiros. Parecia estar lutando como que para não roer as unhas, e não estava comendo os anéis de cebola afinal. Sentamos.

- Olá meninos, tudo bem?

- Tudo, tudo ótimo cara.

- Beleza. Posso? (sim, pegar os anéis de cebola)

- Claro, claro. Eu nem gosto de onion rings, só comprei esses daqui pra meio que afastar as pessoas, enquanto eu espero um amigo meu.

Olhei para o Manoel, ele me olhou também. Cada um de nós com a mesma intenção de passar a mensagem de que estávamos certos, mas, os dois estavam certos. Então ficamos só um tanto confusos. E bom, pegamos uns anéis de cebola, claro. E perguntei.

- Então, por que nós estamos aqui exatamente?

- Bah, cara, calma ai. A guria deve só tá querendo uma companhia marota, de dois caras bacanas como nós. Não é por ai?

- É, bom, quase isso. Quase isso. Você (para mim, chacoalhando o dedo) não é o coelho daquela festa mês passado? Não é você? Tenho quase certeza, quase.

- Coelho?

- É, bom, não um coelho coelho. O cara vestido de coelho, daquela festa de Halloween. O que fez aquele escândalo todo.

- Ãh, eu acho que não.

Era eu sim. Infelizmente.

- Tem certeza? Cara, você parece muito com ele, muito. O da discussão, com a garota lá, no terraço? Talvez você não se lembre. Você tava muito bêbado.

Acho que nem adianta fugir da verdade.

- Eu não bebo. É, mas era eu sim.

Eu bebo de vez em quando, mas prefiro dizer que eu não bebo. Não sei o porquê. Acho que fixa certa imagem de superioridade que eu gosto de manter, para mim mesmo. Sei lá. Bom, obviamente o Manoel sabe de toda a história, até melhor do que eu mesmo. E claro que ele sairia contando e falando sobre isso sem medo. Mas ele sabe o quanto eu sou sensível com isso tudo, ele sabe. Não foi uma noite fácil, e ela é relembrada por algumas pessoas por dia no Youtube (2531 Views). Então, é um assunto meio que proibido na nossa casa.

- Poxa! Sabia que você era o coelhão! Eu sabia! Que interessante. Eu estava lá, você vomitou em mim até.

- Desculpa. Eu vomitei em muita gente, pelo o que eu soube.

- Bah, vomitou mesmo. Em mim, algumas vezes por sinal.

Essa fantasia de coelho, na verdade é bem interessante. Culpa do Manoel, como de costume. Há uns cinco anos atrás, ele tinha esse grande plano de ir a uma festa à fantasia, tematizado com outras pessoas. Uma grande amálgama de fantasias de uma mesma série. Na época, estávamos aproveitando muito toda a diversão e inovação dos novos jogos do Rayman, com os coelhos. Rayman Raving Rabbids. É, isso mesmo. Ele foi de Rayman e eu e mais alguns idiotas alugamos umas fantasias de coelho, claro. Só que na ocasião, eu manchei a minha fantasia com geleia de uva. Ou seja, paguei uma fortuna por aquela peça velha e encardida e fiquei com ela para sempre. Ou seja, uso ela em todas as festas à fantasia e eventos onde se precisa de uma fantasia desde 2006. Algumas pessoas até me conhecem como “Coelhão”. E eu quase gosto desse apelido, não que seja algo incrível, mas eu acho interessante. Sonoro, sei lá. Melhor do que o meu nome.

- Mas e ai, o que aconteceu depois? Isso foi tópico de discussão nas minhas rodas sociais por algum tempo. A cidade inteira ficou sabendo. O que aconteceu? Conta ai.

Então uma defesa amiga.

- Bah, não aconteceu nada, nada mesmo. A gente não precisa falar sobre isso cara.

- Mas, você a conseguiu de volta? Acho que não né? Depois daquilo fica meio complicado.

Talvez eu deva começar a usar uma máscara do Chewbacca ou algo do tipo, as pessoas me reconhecem muito mais do que o necessário.

- É não aconteceu nada. Nunca mais falei com ela na verdade, a poupei disso. Creio que ela merece, não acha?

- Bom, eu não sei. Você estava muito alterado, talvez ela na verdade mereça uma explicação melhor. Uma desculpa de verdade.

- Só espero que ela esteja tranquila, eu estou bem. Sei lá.

E um ataque amigo também.

- Bah, não muito né cara, não muito. Pensa bem, e a interação cara? Tá tudo errado ainda, tu precisa fazer alguma coisa cara. Bah, tomar uma decisão na vida.

- Você devia expressar o que tá sentindo. Não pode ficar guardando tudo isso.

- Eu estou bem! Estou ótimo! Bom, não, não estou não. Longe disso. Mas é um processo, sei lá. Vou ficar melhor. E bom, eu realmente cansei de falar sobre o amor.

E eu cansei de escrever sobre o amor também. Isso aqui que vocês estão supostamente lendo nesse momento, é uma tentativa de fugir do velho estigma do amor. É para ser uma história sobre a amizade e suas pequenas nuances, além de principalmente sobre se reencontrar, encontrar a inspiração. Entender as pessoas, um pouco. Parar de ser um completo idiota. Não sei se vai dar certo, é um tanto sincero demais. E isso é sempre complicado. Mas eu só sei de uma coisa, eu cansei de escrever sobre o amor.

E agora com vocês, ainda mais um personagem para essa história. Um cara esguio e meio “cheio da onda”. Muito alto e escuro. Não escuro de pele, mas com um certo padrão preto na vida. Esse tipo de gente que me incomoda um pouco. Ele veio meio que sorrateiramente e deu um beijo quase agressivo na bochecha da... Bom, da nossa nova amiga ai. Sei lá.

- E ai Drika! Cheguei! Demorei muito? Obrigado por já ter pedido os meus onion rings.

Agora ele nos percebeu, naturalmente. E também a falta de 80% dos aparentemente seus, anéis de cebola.

- E ai caras, tudo em cima? Eu sou o Leo e bom, vocês comeram todos os meus anéis de cebola. Mas tranquilo, tranquilo. Otima maneira de recepcionar um cara.

- Bah cara, foi mal, foi mal mesmo cara.

- Desculpa ai. Eu nem gosto de anéis de cebola.

Então, aconteceu. Como eu tinha certeza de que iria acontecer. Ele olhou para mim fixamente, por muito tempo e muito próximo.

- Caralho! Tu não é o Coelhão cara? É sim! Eu nunca ia me esquecer da cara daquele cara! Poxa Drika, tu tá aqui, de boa, conversando com o Coelhão!

- Pois é! Achei o coelho aqui, do nada.

- Eu vomitei em você também, por acaso?

Ele então começou a rir quase que histericamente. Pouco agradável.

- Não cara, não, não, não! Muito pior.

- Pior?

- É, muito pior cara. Você me empurrou pra piscina! Lá do terraço! Hilário maluco.

- Do terraço? Oh.

Ele é o cara da piscina, não acredito. No vídeo, eu (por alguma razão, que eu não lembro) me jogo completamente para a direção de um cara, que o faz tropeçar e cair do terraço para dentro da piscina. Mas calma, era um terraço muito baixo. Realmente baixo. Mas foi uma queda intensa. Talvez um pouco mais intensa por que o cara estava bastante bêbado. Mas deve ter sido quase útil para ele, essa experiência. Sei lá. Eu aproveitaria.

- Bah cara, tu é o cara do vídeo! É, não é? O Power Ranger Azul que cai pra piscina e, bah, foi salvo pelo pirata. Que coincidência cara.

- Sou eu mesmo! O Power Ranger!

Lembro que eu achei esse cara muito alto para ser um Power Ranger. Eles não eram sempre muito baixos? Eu tenho essa impressão. Sei lá.

- Desculpa ai cara. Aquele foi um dia estranho para mim.

- Bota estranho nisso não é mesmo?

Risadas histéricas seguiram por quase toda a conversa. Não podia ficar melhor do que isso.

- É, não costuma acontecer todo dia.

- Mas então maluco, na real, não precisa se desculpar não. De verdade cara! Eu tava muito louco também, deve ter sido culpa minha até.

- Ah é?

- Sem grilo moleque! Foi até legal, fiquei super conhecido de repente e tal. Sou o “Power Ranger” pra todo mundo cara. É tipo um sonho de infância se tornando realidade. Muito doido. Nunca pensei que ia alugar uma fantasia dos Power Rangers ia causar tudo isso. E pensar que eu quase me arrependi aquele dia.

Ok então, o sonho do cara era ser um Power Ranger. Não posso culpa-lo. Ainda sonho com o meu Megazord. Às vezes.

- Ok então. Fico feliz. Para mim não foi assim tão divertido.

- Tem que relaxar e curtir mais as coisas, moleque.

- É.

- Vai dizer, não foi uma experiência importante? Certo que foi cara, isso não acontece com qualquer um!

- Talvez. Sei lá (Não).

Eu não tinha reparado, mas durante esse tempo que eu falava com o Power Ranger, o Manoel engajou em uma conversa aparentemente produtiva com a “Drika”. Olhei para eles, estavam rindo e se divertindo, se deixando levar de verdade. Gostei daquele momento, senti certa leveza. Algo que eu já não me permitia há algum tempo. Não ouvia nada do que eles falavam, e isso não era importante. Eu não queria ouvir. Mas fiquei olhando para eles durante algum tempo, pouco com certeza. Mas parecia uma eternidade. Um momento tão simples e sincero que acabava representando tudo o que eu tinha esquecido. Como as pequenas coisas acabam comigo. Preciso aprender a lidar com isso. Por que não só as pequenas coisas, as coisas grandes realmente acabam comigo. Sensibilidade, muita. Talvez não para as coisas certas. Sei lá. Eu precisava de alguma tranquilidade e me incomodava o Manoel ter tanta.

- Bah, galera, vou ali comprar um Calzone. Tô morrendo de fome, bah, morrendo de fome.

- Calzone moleque? Achei que ninguém comia isso.

- Bah, curto muito cara. De carne com queijo, fantástico.

- Eu vou com você. Posso?

- Claro cara, bah, vamos lá.

Por alguma razão, a fila do calzone naquele dia estava enorme. Realmente nunca vi tantas pessoas assim querendo comer um calzone. Não é o alimento mais popular do mundo, não é nada popular na verdade. Senti que íamos ficar muito tempo naquela fila, e eu já estava esperando há muito tempo.

- Cara, Manoel, eu não aguento mais. Não aguento mais! Eu tenho que falar alguma coisa, não aguento cara.

Ele me olhou com sincera preocupação. Esse é um cara que não consegue não ser sincero, e acho que por isso que eu gosto dele.

- O que foi?

- Bah, sei lá, você parece tão tranquilo! Tão tranquilo, sempre! Eu não sei lidar com isso cara! Não sei!

- Não precisa fazer uma cena na fila do calzone também.

- Calzone? Foda-se o calzone cara! Eu realmente, realmente não me importo com o calzone! Por que você teve que mudar tanto? Do nada? Me deixar sozinho cara! Eu não sei como lidar com isso, o que eu faço cara?

- O que mudou tanto?

- Tudo cara! Tudo! Sabe? Éramos nós dois, juntos contra o mundo. Dois jovens confusos, sempre pensando na vida. Nos problemas! Reclamando das pessoas, do amor. Insatisfeitos, com certeza. Sempre insatisfeitos. Mas juntos cara! Você era a minha única companhia nessa incerteza toda, ai você vai lá, do nada e é feliz ou sei lá! Esse não é o Manoel que eu conheço!

- Você está chateado por que eu estou tranquilo?

Não parece muito justo, não é? Quase me sinto mal por escrever isso.

- Não! Pelo menos, eu acho que não. Talvez sim cara, talvez sim mesmo. Eu não estou pronto para não me sentir desconfortável no mundo! Não tive nenhuma preparação, e estou no meu pior momento cara! Você sabe disso! Por que, logo agora, você teve que ficar tão seguro e tranquilo? Eu sinto falta cara, sinto falta, de poder conversar pela madrugada sobre tudo aquilo que me incomoda, despejar tudo em cima de você. E depois ouvir todas as suas histórias, ver que meus problemas não são tão complicados. Ou são, mas não sou o único, sabe? Interação não é? Do nada, do nada, você é totalmente alheio!

- Tu tem que parar de querer me botar para baixo. Isso é só uma defesa pra você não se sentir mal de não ir pra cima comigo. Entende? Bah, interação cara, mas por que sempre do jeito que tu quer? Tu tem que parar de querer controlar tudo cara, é o que eu sempre te digo.

- Tá, tá. Tá, mas agora? Depois de tudo aquilo? Depois da festa?

- Tu perdeu ela justamente por isso. Foi tudo culpa tua cara! E bah, justamente por causa desse teu jeito! Como tu não percebe? Em vez de sair dessa, tu entrou mais ainda. Eu percebi que não dava. Eu quis mudar cara, e estou tentando ainda. É um processo.

- Talvez.

- Ser mais aberto para as coisas cara! Bah, simplesmente, permita-se um pouco. Tu acha que eu vi qualquer coisa daquele filme em 3D hoje? Claro que não! Mas eu me permito ver o 3D. Eu quero ver o 3D entende? Eu faço o meu 3D cara.

- É.

- E interação cara. A humanidade não te odeia, tu quer que ela te odeie. Não deixe as coisas, pequenas ou grandes, acabarem contigo cara. Bah, elas só fazem isso se tu quiser. Tu coloca o peso e o valor delas. Tu cara.

- Não é assim tão fácil.

- Nunca é cara, bah, nunca é! A vida é como aquela fase de sonic, lembra? Te lembra disso? Que eu falei mais cedo. Scrap Brain Zone.

- Sim?

- É tensa, com milhões de obstáculos tensos. Bombas, fogo, chão instável! Mas tem que ter paciência cara, paciência. E no final, enfrente o Robotnik cara, bah, acaba com ele. Tu já não é mais criança.

- Bom, eu gosto de analogias com videogames.

- E se esquece daquela festa cara. Esquece mesmo, chega disso. Bah, as pessoas só vão se esquecer, quando tu se esquecer. Confia em mim.

- Eu joguei a roupa fora. A do coelho.

- Bah cara, tava manchada.

- De geléia.

- Qual sabor cara?

- Uva.

Enfim chegamos ao calzone, com a impressão de que a fila não foi assim tão grande. E que foi a maior fila que já pegamos na vida. Eu pelo menos.

- Vê um calzone de carne com cheddar ai cara.

E o caixa, como sempre desenvolto demais.

- Putz, acabou meu bruxo.

- Bah, me vê qualquer um ai então. Qualquer um tá bom.

E naquela noite, eu escrevi. Para a tristeza do papel em branco.